Crônicas 2021-2023
OVO
porque essa coisa com o primeiro se quem ri por último ri melhor? afinal lidamos com os dois lados de uma vez e o ovo conta a mesma história do começo ao fim ou do avesso, oroboro do tempo. por 15 reais a dúzia, máquinas de movimento perpétuo que ainda não resolvem os problemas termodinâmicos mas pelo menos nos dão palavras redondas pra narrar fatos, mitos, mentiras e bobagens in medias res. história circular que satisfaz nosso tempo por acabar sempre nun ovo começo, o sol frito estalando amarelo se misturando com o breu agitado do café no céu da boca
27 de dezembro de 2023


São João
Graças a Deus não é mais dia dos namorados e entramos nesse 13 de junho frio mas pelo menos não tão melecado das imagens grudentas e doces que escorriam do celular. Hoje é dia de Santo Antônio e alguma esperança se apresenta pra todo mundo que ontem só esquentou sua janta individual, assistiu um filme que não termina eternamente feliz e acompanhou a final do basquete. Alguma esperança que não precisa ser na especialidade milagrosa do dia. Para variar a rotina beata e não encher o saco do santo com mais um matrimônio, podemos pedir, quem sabe, uma pamonha perfeita ou mais um gol do palmeiras, um dia de sol, que o Jimmy Butler ainda tenha tempo, uma quina no bingo ou só uma quermesse com amigos.
13 de junho de 2023


Mosquitos e Donna Haraway
Hoje valorizo a companhia, mas quando era criança, sentia uma necessidade definitiva de matar esses mosquitinhos de banheiro. Pelo que me lembro, vinha de um certo nojo, principalmente por estarem no banheiro, nesse lugar onde somos vulneráveis, sem as armaduras de pano, onde tudo deve ser limpo, lugar proibido para essa outra espécie — na linguagem indiferente da ciência, a Psychoda cinerea.
Num livro do Vilém Flusser, ele fala que existe uma hierarquia do nojo, quanto mais distante, na árvore filogenética, uma espécie está dos humanos, mais sentimos asco. E, apesar de sempre ter chamado esses mosquitos de morceguinhos de banheiro, não os via como outros mamíferos, mas como invasores daquele espaço altamente civilizado.
Com os anos fui percebendo que não importava quantos eu matasse, eles não iam parar de aparecer, nunca eram muitos, mas sempre tinha um ou dois, inofensivos, quietos.
Não acho que esses mosquitos sejam, como os cachorros, seres que Donna Haraway chamaria de espécies companheiras. Mas, considerando a quantidade de banheiros que existem, talvez sejamos, em algum nível, um outro significativo para eles: "Nós os 'convocamos' para dentro de nossos construtos de natureza e cultura, com grandes consequências de vida e morte, saúde e doença, longevidade e extinção". Assim como também é capaz que, por meio dessa silenciosa companhia, eles nos comuniquem algo significativo. Algo que, como aconteceu com Haraway e Cayenne, seja transmitido transfecciosamente entre as duas espécies. Alguma coisa que, no meu caso, me afetava a cada mosquito que eu matava com meu violento dedo infantil, numa coevolução minúscula e particular.
Algum tempo atrás, virou meme a suposta ausência de função deles, mas pode ser que a natureza, nessa forma, esteja ali só para existir, para lembrar que tudo isso que valorizamos sob o nome de cultura, não seja capaz de apagar, por mais que insista, a presença perene da natureza.


22 de maio de 2023


Memórias Pascais
Já fazia um tempo que eu pensava em fotografar a procissão do Domingo de Ramos em Caieiras, imaginava encontrar 12 crianças vestidas de apóstolos, uma em cima de um burrinho e os vários ramos verdes. Mas não teve nada disso, quase parecia uma missa comum e o burrinho provavelmente teve o domingo de descanso.
Depois lembrei da Bênção do Fogo Novo, pensei na grande fogueira e no cheiro forte de incenso. Mas também foi um tanto decepcionante, a fogueira era só uma chama num tacho pequeno e o incenso sumia leve no ar da noite.
Quando era criança e tinha que pedir pros meus pais pra tirar fotos, acho que nunca devo ter pensado em registrar esses momentos católicos, não via necessidade alguma, já que todo ano acontecia a mesma coisa, do mesmo jeito.
Às vezes penso que a fotografia, diferentemente da pintura e da escultura, é uma mídia que se relaciona com as coisas e com o espaço de outro jeito. A princípio, ela não cria nada, é uma técnica de registro. A fotografia, no seu uso mais prático e banal, é algo que serve pra nos ajudar a lembrar dos momentos, dos lugares, das pessoas e da vida que a gente pensa que tem.
E aí dá pra ver algum engano meu, porque, mesmo que as cerimônias continuassem exatamente iguais, eu não ia conseguir fotografar o que imaginava.
Pode ser que essas fotos retratem um pouco de como é a Páscoa em Caieiras, mas eu não consigo encontrar o que esperava, nem consigo ver o que os outros veem, do mesmo jeito que ninguém vê o eu que vejo aqui. Provavelmente é o que acontece com todo mundo quando mostramos fotos antigas ou quando colocamos aquela música que ninguém se importa tanto quanto a gente, um certo descompasso entre o que vivemos, o que esperávamos viver e o que acontece de fato.
17 de abril de 2023
Enfim, o Carnaval
Já dá pra sentir um formigamento na pele, mas não de formigas comuns, dessas monocromáticas e que, nas fábulas, são conhecidas por trabalharem solitárias e só, cada uma no seu peso particular.
No corpo já começa a passar um calor que não vem do sol de fevereiro, nem diminui na chuva e na noite. Uma euforia natural preenche a cidade como o vento precursor de tempestades, como essa eletricidade invisível que mexe as coisas antes delas se moverem e os olhos caretas em gavetas monótonas parecem não enxergar o que acontece.
Estamos na beira do que pode ser o fim ou o começo do mundo, no limite da existência, onde tudo, a partir de então, será outra coisa, outras construções feitas das cinzas do que foi esse gênesis inconsequente.
Difícil falar disso que se passa usando essas formiguinhas escuras que constroem sentenças bem organizadas nas páginas. Porque o que será escrito não é linear nem prosaico, talvez seja poesia, mas uma poesia sem letras sem vírgulas e que passa acima dos pontos finais
uma poesia que ninguém vai ler não será impressa nem salva poesia
como o suor que pinga evapora e chove de novo
na pele poesia breve do olhar das línguas que ensaiam juntas palavras tão íntimas que não se escuta nos ouvidos mas que se somam ao grande poema da carne feito em mil vezes mil corpos juntos duas mil vezes mil mãos que se abraçam pés incessantes passando nas ruas que não servem de via pois não há mais destino algum tudo é início meio e fim enfim,
o Carnaval
17 de fevereiro de 2023
Meu amigo Bernardo Ceccantini
Hoje é aniversário do meu amigo Bernardo, ele é poeta e, além de escrever, faz a melhor pizza que já comi nessa cidade. Ano passado a gente trabalhou junto uma época, na Mário de Andrade, conversávamos muito sobre comida, exercícios e literatura (e, às vezes, sobre se era o caso de usar "para" ou "a" como preposição).
Outro dia ele me contou, eu não sabia, que o João Antônio perdeu o original de "Malagueta, Perus e Bacanaço" num incêndio e reescreveu o livro na Mário, "Por isso que ficou bom", me disse. Bem Bernardo isso, essa persistência em refazer o que quer que seja até descobrir tudo o que aquilo pode ser.
Se cada pessoa tivesse um verbo, o dele seria "mastigar", seja o virado à paulista do Salada Record, o arroz do Ita, ou um novo poema. O Bernardo alonga um verso do mesmo jeito que deixa a massa fermentando mais uns minutos, com um advérbio, aumenta suavemente a temperatura do forno, intensifica o ritmo da frase colocando mais 20 kg no leg press, guarda uma rima no dente de alho e a corta bem pequena, ensaia o abrir de uma massa de pizza como quem reescreve a mesma estrofe mil vezes, até chegar lá, onde a gente sabe que nunca é o fim.
3 de fevereiro de 2023


Da morte de Paul Vecchiali
Na Mostra de 2017, fui numa sessão de "Le café des Jules" na qual o diretor estaria presente. Fiquei um pouco, mas logo cansei das perguntas, coisas que não precisavam de respostas e fazem parecer irrelevante a presença do realizador ali.
Saí da sala do Belas Artes, passei a vista nas notificações que ficam sobrando no celular durante um par de horas, comprei uma bala de menta, daquelas da Garoto, e então vi que ele estava ali, sozinho, o Paul Vecchiali. Na época, tinha acabado de conhecer seus filmes e fui conversar. Disse que gostei da sessão, mas que queria falar do "Les sept déserteurs", que tinha visto no dia anterior. Ficamos lá um tempo, na minha cabeça, uma meia hora, mas com certeza foi menos, o tempo passa diferente em momentos importantes.
Conversamos sobre como ele dirigia os filmes, do que ele queria dizer com tais e tais cenas e eu até comentei um pouco das coisas que gostaria de fazer, tinha acabado de entrar no audiovisual. Lembro bem de quando ele falou, num tom sério e especialmente francês, da importância do cinema independente. Disse que, apesar de ser fundamental buscar meios de realizar os filmes, só o cinema independente nos ensinava a não ser cineastas dependentes.


18 de janeiro de 2023


Barbárie em Brasília
É difícil explicar o que aconteceu em Brasília no dia 8, acho que nem gostaria de tentar pra não gastar o raciocínio com o que parece irracional. Por outro lado, é esquisito não pensar sobre, simplesmente assumir que seja algo normal nesses tempos brasileiros.
Esses atos, a tentativa grotesca de golpe e destruição, não podem ser entendidos como um movimento comum, parecem estar mais próximos da barbárie. (1. Bárbaros: aqueles que não eram gregos, povos não civilizados.) E, sem entrar no problema etnocêntrico do termo, talvez aí encontremos alguma motivação para a violência.
Nos últimos 4 anos eles imaginavam que tinham o país, toda semana ouviam o então presidente no cercadinho, usavam a camisa da seleção e a bandeira com orgulho. Mas o problema de tomar esses símbolos como se fossem seus, só de parte de parte dos brasileiros, é que eles são maiores e estão além de qualquer individualidade ou ideologia.
E então, de um dia pro outro, eles veem que essas simbologias não estão mais em suas mãos (até o tal do mito sumiu). E a verdade é que esses símbolos nunca estiveram com eles e, a partir do desespero de quem acha que não tem mais a nação que considerava só sua, surge essa destruição bárbara e infantil, uma atitude do tipo: se eu não tenho ninguém tem. A destruição dos patrimônios (2. Patrimônio, em latim, patrimonium, aquilo que é passado de pai para filho, herança.) é o outro lado da captura da camisa da seleção e da bandeira.
Talvez, essa destruição seja uma reação a não se ver mais como parte da pátria, uma sensação bárbara, apesar de se declararem patriotas. (3. Patriota, do latim patriōta, aquele que é filho da mesma terra mãe.)
A verdade é que eles não são patriotas nem bárbaros e é até estranho dizer que sejam realmente brasileiros.
Mas o Brasil, agora, está em melhor cuidado. Inclusive, alguns dizem que "brasil", vem do celta "barkino", que, em espanhol, era "barcino" e, em Gênova, "brazi", palavras que vêm de "kinnabar", que, em grego, está relacionada à cor vermelha.
13 de Janeiro de 2023
3 de janeiro de 1936
Essa semana meu avô fez 87 anos. Ele nasceu em 3 de janeiro de 1936, ano que (principalmente quando criança mas) até hoje me serve um pouco de referência cronológica do mundo. Sempre penso nos acontecimentos e nas pessoas a partir da distância temporal que há entre elas e meu avô. Pelé, 4 anos mais jovem, Beth Carvalho, 10 anos mais jovem, Milton Nascimento, 6 anos mais jovem, rainha Elizabeth, 10 anos mais velha, 3 anos quando começou a Segunda Guerra, 22 quando o Brasil foi campeão da Copa do Mundo, 28 no golpe de 64.
Imagino ele vivendo as histórias que conta, histórias que conferem ao passado uma materialidade viva que nunca encontrei lendo os livros de história. 1932, Revolução Constitucionalista; 1954, morte de Vargas; 1960, Fundação de Brasília; etc. Esses fatos impressos tão indiferentemente nas apostilas pareciam pertencer a um mundo diferente do meu.
As narrativas do meu vô — de quando ele pulava os muros das antigas fábricas pra pegar o trem, da receita do molho de pimenta (que como até hoje) conquistada com esforço em um boteco do centro, dos ossos reaproveitados nas coxas creme, da evolução dos computadores na Servimec —, por outro lado, têm algo de esfumaçado, algo de duvidoso, uma possibilidade de engano ou até de invenção, algo impossível de ser reproduzido em letras geométricas e digitais.
Sou 57 anos, 7 meses e dois dias mais novo que meu avô, é um pouco assim que me localizo na história do mundo. E talvez eu escreva sempre perseguindo uma energia viva semelhante à essa que há na voz de quem conta uma história, coisa que, mesmo sem tentar muito, meu avô tem no papo.
8 de janeiro de 2023


Pelé
Pelé, como dizem, é o rei, mas tenho algum receio em usar essa palavra pra descrever o maior do futebol. Não me parece fazer sentido que esse posto, hereditário e definitivo, caiba num esporte responsável por, pelo menos em alguma medida, igualar os jogadores em campo, oferecendo a glória àqueles que realizarem o melhor futebol, independente de quem sejam fora das quatro linhas.
Foi Nelson Rodrigues que chamou Pelé de rei pela primeira vez: "Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável – a de se sentir Rei, da cabeça aos pés." Mas um rei não precisa fazer nada para ser coroado, e Pelé fazia muito.
Li em algum lugar (acho que foi Paulo Mendes Campos que escreveu) que o futebol é tão popular porque a dificuldade de fazer um gol é como a dificuldade de vencer na vida. Reis não se misturam com os outros, e o divino, como já escutei muito, está no meio de nós, no campo. Por isso me faz mais sentido relacionar Pelé com o divino e não com a realeza. Uma heresia, mas que certamente será perdoada, com a benção da mão de Deus.
Milagres acontecem nos momentos difíceis, como se nada além deles pudesse resolver uma situação. Era o que Pelé fazia, um futebol mágico e milagroso.
Pelé é eterno porque há algo incompreensível em suas jogadas, por mais que as vejamos, há um encanto para além da realidade, nunca explicado.
O mundo é futebol, e o futebol é Pelé.
29 de dezembro de 2022


Telefonia
Na semana passada, as últimas cabines telefônicas foram tiradas das ruas de Nova Iorque, o fim de mais uma evidência dessa época destinada à extinção.
Época em que talvez houvesse uma leveza anônima e silenciosa no andar, uma despreocupação que podia ser o único alívio das outras preocupações que existiam. Não sei, não vivi tanto nessa época, mas a ideia de sair na rua sem ter a possibilidade de se comunicar com ninguém, a não ser nesses pontos específicos, parece ser uma angústia e um alívio ao mesmo tempo. Não tinha nada que você pudesse fazer a não ser estar na rua, no caminho de qualquer lugar, um tipo raro de solidão.
Sempre que penso sobre a telefonia tento imaginar o que significava a pergunta "cadê você?" antes de existir o celular. Devia ser uma pergunta menos comum, só podia ser feita dentro de um espaço muito delimitado, até onde sua voz alcançasse. A única exceção era no caso de alguém te ligar de um telefone público, mas você nunca ia descobrir onde uma pessoa estava se ela mesma não te ligasse.
A própria palavra "telefonia" indica algo que leva a voz para longe, mais longe do que, teoricamente, era para ela alcançar. Com o telefone fixo, vamos um pouco mais adiante, mas ainda ficamos dependentes do espaço, só chegamos até uma sala específica caso a pessoa esteja lá para atender.
Antes do telefone e do celular, viviamos uma situação, de certa maneira, mais orgânica acerca da condição dos corpos no espaço, ninguém estendia sua existência para além da própria voz ou da lembrança que deixava nas pessoas, uma presença menos marcada, mas provavelmente mais evidente.
É curioso pensar que agora a gente sabe muito sobre a vida de muita gente o tempo todo. Mais curioso ainda é pensar que isso não muda a relação que temos com essas pessoas. De algum jeito a gente está em todo lugar e em lugar nenhum ouvindo tudo e entendendo pouco, a atenção nos detalhes errados e falando por cima das coisas todas mas eu não tô te escutando, tá me ouvindo?
05 de junho de 2022


Sonhos
Tem coisas que a gente só vai viver em sonho, a sala de uma casa de neblina, uma voz te dizendo coisas que precisariam de outra vida para contar, dias que nunca vão acontecer no mundo palpável.
Aqui lidamos o tempo todo com tudo que já aconteceu, com todos os dias que se acumulam formando o que chamamos de nossa história, e isso torna algumas situações simplesmente impossíveis.
Em algum momento tomamos decisões e coisas acontecem, as pessoas mudam e, se não decidimos nada, o tempo transforma o tom dos lugares e das vozes. E depois que as coisas se desenrolam nada é como antes, sempre vai ser diferente de algum jeito.
Os sonhos não são assim. Cidades da nossa memória e desejo onde, sem sabermos como, chegamos numa rua desconhecida, entramos num prédio e pegamos o elevador para um andar em que se realiza um momento irreal, como se parte da nossa história tivesse seguido outro rumo, e somos brevemente felizes por isso.
Depois acordamos sem conseguir explicar porque nos sentimos estranhos. Descobrimos esses lugares perdidos da gente e ficamos impressionados com o que pensamos, com o fato de que gostaríamos tanto que outra realidade fosse possível e, mesmo assim,nunca pensamos sobre isso.
E aí, a partir dessa manhã esquisita, você tem que viver sabendo que parte de você queria muito uma coisa que nunca vai acontecer, algo que faz parte de outra história, uma história que ninguém contou. Uma sessão de cinema perdida, você sabe mais ou menos o que era, mas nunca vai ver o filme.
23 de maio de 2022
Natureza
Sempre pensei em "natureza" como uma palavra verde, acho que, de modo geral, pensamos na natureza como algo verde, dada a cor dos livros escolares de biologia. É uma visão um tanto limitada do conceito de natureza, já que ela tem todas as cores ou quase isso.
Ainda assim, nos colocamos fora dela. "Entrar em contato com a natureza", dizem quando viajam, sem se lembrar das raízes que regam a voz emitindo barulhos que só a gente entende, e olha lá.
A cor da natureza, se tivéssemos que escolher uma, — essa nossa vontade de enquadrar as coisas — deveria ser o escuro, já que só enxergamos o ínfimo de um pouquinho do todo.
Dos oceanos, por exemplo, vemos só a superfície e durante o dia. E eles não são nada perto do desconhecimento da natureza extraterrestre. Tenho pensado nessa parte da natureza que geralmente não lembramos de classificar como natureza.
Esses dias falavam do som de um buraco negro, da foto de um buraco negro e do eclipse da lua, este último acompanhado de imagens que podiam ser do poste da esquina da rua de baixo.
Mas tudo isso que vemos e ouvimos de lá é meio adaptado, para pensarmos que estamos avançando, de que entendemos alguma coisa: o tom do buraco negro é acelerado 50 vezes pra ficar audível; a foto do buraco negro é uma rosquinha de luz meio desfocada e aparentemente frágil; do eclipse só vemos a sombra, e não o evento.
Talvez tenha um motivo para que tudo seja obscuro, para que tudo esteja fora do nosso alcance, para que haja sempre esse jogo de revelar e esconder, nós nunca vemos o lado oculto da lua. Mas é provável que nunca consigamos explicar a natureza por completo, não importa o tamanho do nosso orgulho, nem quantas pessoas mandamos pra lua, nem quantas fotos tiramos. Às vezes, quando se aponta pra lua, interessa olhar o dedo.
19 de maio de 2022


O trânsito dos peixes
Ou o futuro finalmente chegou, ou ele se perdeu de tal modo que agora busca ajuda dos mais improváveis seres para voltar aos eixos. Eixos que ele talvez não acredite ter a capacidade de manejar sozinho, levando em conta o experimento de colocar veículos nas mãos, digo, nas pequenas nadadeiras de peixinhos dourados.
Mas, como o fim é sempre improvável e tudo se recusa a terminar mesmo diante do absurdo, talvez isso não passe de um plano empresarial bastante disfarçado, supostamente genial e bilionário de alguma startup de transporte e entregas. Porque a chuva, porque os direitos trabalhistas, porque os motoristas, os motoboys, porque o direito dos animais, "eles não podem trabalhar, meu?" Tudo justifica, econômica e publicitariamente, a ideia inovadora, com a umidade e a chuva desses dias então, dá até pra economizar na água dos peixes, um uber no Tietê, se soubéssemos que eles dirigiam, tava pronto faz tempo.
Agora, apesar do clima surreal da incessante chuva, os peixes não vão precisar entrar pelas portas e sair pelas janelas navegando no ar dos aposentos como faziam em Macondo, começam a conquistar, provavelmente a contragosto e só pelo intermédio de recompensas alimentares, os direitos e os deveres das pessoas habilitadas a dirigir. E assim a humanidade avança um pouco mais sobre a vida, expande aos animais aquáticos a enorme cultura do trânsito dos carros, onde não se anda, nada.


13 de janeiro de 2022
501
Algum tempo atrás estive pela última vez no apartamento 501, que era da Bel, da Milena, do Hiago e do Antônio, naquela noite, antes de descer com alguns móveis, comi um sushi, escutei Miki Matsubara e Mariya Takeuchi e tirei algumas fotos pra lembrar do lugar, pra facilitar o acesso às lembranças acumuladas ali, o porteiro Diniz, o pátio do prédio, a madeira boa dos armários, os apartamentos vizinhos.
Agora era hora de aparecer aqui no texto as tais lembranças importantes, com algo de sentimental e engraçado que precisa ser contado. Mas não estou pensando no que fica com a gente, e sim sobre o que fica da gente nos lugares, o que, enquanto gastamos a vida dos espaços tirando fotos que consomem o colorido das paredes, deixamos nas ranhuras da madeira, coisas que penetram nos poros das pinturas e nos detalhes dos interruptores.
Imagino se, enquanto vivemos acumulando memórias, o mundo não nos rouba os hábitos e, no futuro, os repassa às pessoas que passam ali. Uma vontade distraída de respirar a noite sobre o pátio, ou a curiosidade impensada de acompanhar o apagar das luzes dos apartamentos vizinhos. Costumes indiferentes que, um dia qualquer, deixamos de fazer e não sabemos porque.
11 de janeiro de 2022


Lembrança
Hoje passei em frente a uma escola onde meu pai foi professor, a cantina vendia uma coxinha ótima, sem catupiry, que eu comia enquanto voltava pra casa, lá pelas 6 horas da tarde, ouvindo músicas entre as notícias no rádio.
Hoje era eu quem dirigia o carro, mas, enquanto o veículo ia adiante, eu voltava para trás na história. A memória que eu buscava era uma que não possuo perfeitamente, um pouco anterior às coxinhas do colégio, a lembrança do meu primeiro quarto, com a cama azul e uma escadinha para alcançar o colchão. Sei como ela era por causa das fotos, mas não consigo ver o que via então. Eu saía do banheiro amarelo, virava à esquerda no corredor e entrava no meu quarto, mas é como se nada tivesse existido, um filme sonolento visto tarde da noite.
Provavelmente não reparei direito na transição dos quartos. Talvez, se tivesse prestado mais atenção nas últimas noites ali, ainda conseguiria viver o espaço, mas a noite derradeira passou e eu não percebi.
O problema é que a gente nunca percebe essas coisas, um dia tentaremos nos lembrar de algo e só então daremos falta de algumas peças.
Na hora, você nunca percebe que é a última vez que joga bola com aqueles amigos, que anda de skate, que passa a madrugada na praça bebendo cachaça, que dá um rolê com aquela galera. Ninguém percebe.
Uma das minhas histórias em quadrinhos favoritas é do Marcos KZ, ela fala um pouco sobre isso, "15 anos atrás, meu grupo de amigos ainda está na nossa última festa juntos. A gente nunca vai saber".
1 de junho de 2021




Memória
Você já parou pra ler seus e-mails antigos? Mensagens de anos atrás, quando ainda não eram e-mails antigos, apenas e-mails comuns, coisas de irrelevância qualquer deixadas nos cantos dos dias.
Fiz isso semana passada, movido por uma nostalgia intensificada pela quarentena, e os e-mails não eram mais os detalhes triviais que ignorava todos os dias, agora significavam mais do que o texto objetivo que comunicam. Podia ser só o efeito do olhar sobre o passado que, hoje, parece muito diferente do que achávamos que era. Mas os emails têm algo de diferente das fotografias. Elas carregam coisas demais, são sempre feitas em momentos marcados, coisas que intencionalmente tentamos não esquecer. Já redescobrir os e-mails é como tirar do esquecimento os fósseis dos anos que vamos enterrando para continuar vivendo, detalhes que não prestamos atenção enquanto fotografamos o que achamos ser verdadeiramente importante. Por isso mesmo, por passarem quase despercebidos, é que eles mantêm a singularidade intacta daqueles dias.
Esta escrivaninha, onde me debruço agora, é feita da madeira da mesa na qual fazia as lições de casa da terceira série, olho para a textura envernizada, vejo a mãozinha infantil e insegura dentro da minha, segura a caneta, rabisca estas letras.
“É assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.” (Proust, Em busca do tempo perdido.)
6 de maio de 2021


Eucaristia
Agora que não podem ir à igreja, meus avós assistem à missa todos os dias na tevê, coisa que sempre achei curiosa, assistir à missa na televisão. A situação pode ser exemplo de gramática: em casa, na sala, se assiste à missa, na igreja, se assiste a missa.
Na catequese, uma das minhas professoras sempre dizia que não devíamos assistir à missa, mas participar dela. O que é meio difícil de entender quando se é criança, porque você só escuta o padre falar e fica de pé ou sentado nas horas certas. Meus avós sempre foram ministros da eucaristia e, quando eu ainda não podia comungar, todo final de missa eles me davam uma ou duas hóstias do pacote. Era só pão, mas tinha algo de especial, aquele sabor seco fazia eu me sentir mais parte da igreja. Então é assim que é, pensava, mesmo que não entendesse a maioria das palavras que faziam aquele pão se tornar carne.
Na missa televisionada não tem hóstia, não tem um padre ali para transformá-la em corpo. Diante disso, meus avós sempre deixam um copo de água e um pedaço de pão na mesa de centro para comerem na hora da comunhão. O pão não se torna sagrado por ter assistido ao programa, eles sabem disso, mas sempre deixam o pão e a água para servirem de símbolo à carne e ao sangue.
Já faz mais de um ano sem irem à igreja, mas meus avós não parecem se sentir mais longe de Cristo. Entender o tal do mistério da fé não depende tanto de se estar na igreja, nem das palavras do padre, nem do próprio padre. Mas de um sentimento meio infantil que permanece vivo mesmo depois de já ter comungado infinitas vezes, da simples certeza de ser parte de algo sagrado e eterno mesmo bebendo um copo de água e comendo uma fatia de pão de forma diante da tevê.
24 de abril de 2021


Distrair
Parece que tudo que vou falar precisa de uma certa correção prévia para se precaver dos problemas e dos mal entendidos que ficam nas brechas entre as palavras. Como as fotos tiradas com celular, que sempre saem escuras, claras ou borradas demais e por isso os filtros instantâneos do instagram fazem tanto sucesso, talvez.
Por isso decidi escrever isso agora mesmo, tentando desviar dessas redes e obstáculos que foram ficando mais complexos à medida que eu avançava nas práticas da exposição coesa e bastante treinada nos estágios como revisor durante a faculdade de Letras.
Mas é difícil, tudo que se fala já foi pelo menos um pouco ruminado nesse tempo de espera, e mesmo os poucos detalhes inéditos que aparecem de surpresa num descuido da inteligibilidade explicativa são rapidamente sondados e não chegam às letras sem algum enxágue intelectual.
Acho que em algum lugar as palavras se movem tortas, como as minhocas e as formigas na terra ou as baratas no esgoto. Elas precisam escapar dessa vigilância organizada, fugir, nas letras, desse corpo que anda cada vez mais reto, que raramente se distrai enquanto escreve, que só às vezes desconcentra, olha pra trás, perde umas letras e segue.
25 de março de 2021
Cristais
Quando era criança, andava com meu avô pelo bairro e olhava atento para o chão à procura de algum objeto valioso, no meu entendimento infantil acerca do valor das coisas. De modo geral, nada demais, só aquela brita de obra e mato de calçada. Mas às vezes encontrava uma dessas pedras de cristal que pareciam a fonte bruta do que se transformava em joias raras. Ali, o brilho sublime que me parecia exclusivo desses objetos adultos — coisas para serem vistas e não tocadas — estava disponível de graça, num chão qualquer de uma esquina qualquer e sujo de uma terra qualquer sobre a qual as pessoas passavam distraídas.
Recuperar um daqueles cristais, na história da minha infância, era encontrar uma existência especial das coisas, existência que tinha medo de tocar, atenção redobrada nas lojas de louça e ao encher de suco a taça no almoço de Páscoa. Mas o medo de quebrar o vidro virava euforia ao ver o cristal perdido na terra, ao encontrar um brilho mais sólido que aquele das taças polidas e lavadas à exaustão, até serem completamente estáticas.
Olho agora para essa pedra suja sabendo que ela não vale tudo aquilo que imaginava quando era criança, inclusive, talvez eu já suspeitasse disso naquela época, ao perceber que ninguém que passou por ali antes de mim se interessou por ela. Mas sinto que a pedra ainda tem algo da intensidade que me fascinara, ainda resiste aos frágeis exércitos de louças de cristal que aguardam congelados sobre avisos de quebrou, pagou.
12 de março de 2021

